O trabalho, “Sentimentos Distraídos” (fig. 1) de Marina Camargo é uma mistura ou forma híbrida de elementos de desenho e texto. Estes são ordens diversas do funcionamento da linha. Esta mistura de elementos pode não ser tradicional para o contexto da arte, mas é comum em catálogos ou manuais técnicos de instruções dos quais Camargo apropriou o estilo mais técnico deste desenho ilustrativo com texto. Essas ordens ou funções da linha – seu uso na escrita e o seu uso no desenho técnico coexistem no mesmo espaço (do suporte) sem serem subservientes um ao outro. 

(Fig.1) “Sentimentos Distraídos”, 2006. 44x35cm

O trabalho apresenta o que parece ser um desenho técnico esquemático de um motor de carro des-assemblado (des-montado ou des-construído). A escrita de tipografia impressa na mesma folha não apresenta uma descrição técnica do motor, mas fala de “sentimentos distraídos”, paradoxalmente apropriando um tom de voz analítico ou objetivo de instruções escritas para efetuar o processo de “desmontagem de um sentimento” e apontando com uma linha reta à ilustração linear das peças de um carro e seu motor desmontado em partes (fig. 2).

O trabalho levanta um questionamento contemporâneo sobre o desenho e suas funções históricas em contextos sociais. Historicamente, na arte, o desenho foi visto como uma forma de expressar ideias e projetos, mas não era associado à expressão de sentimentos, o que foi papel da cor, segundo Vasari.  Isto relaciona-se a um longo e antigo debate na estética sobre a função da cor e da linha na pintura a cor foi tradicionalmente vista como meio de expressão e o desenho como modo de projetar ideias, coisa mental (ver o texto de apresentação da “O desenho em todos os Sentidos”, 2008, de curadoria de Marcelo Campos que discute esse contexto histórico em relação ao desenho contemporâneo.)

No Modernismo, já vimos a valorização do desenho como obra em si, pois, anteriormente, o desenho na arte era algo auxiliar a outros projetos de pintura, gravura, escultura e arquitetura. Na Renascença, o desenho técnico não era valorizado como “obra”. Originalmente, estudos e esboços não eram apresentados em público. Essas obras invisíveis começam a ganhar a devida visibilidade mais recentemente, como, por exemplo, na exposição no MARGS, “Pedro Weingärtner. Obra Gráfica”, 2008. A perspectiva linear e os estudos das figuras representadas na pintura eram somente uma parte preparatória da pintura, do processo de elaboração. Hoje, o esboço e o estudo estão no espaço de exposição valorizando o processo tanto quanto o que for considerado uma forma final possível de uma proposta artística, sendo muitas vezes pensada como projeto aberto para a transformação e a interação do que como “obra acabada” (“não-acabada” por ser justamente uma proposta experimental). E, muitas vezes, não há somente uma forma final quando lançado ao mundo.  As consequências de um desenho, por exemplo, podem ser deixadas em abertas e inacabadas – uma proposta para um leitor ou visitante ou participante ou interessado que aceita o convite para entrar num espaço, ou entrar no jogo, para interagir com o trabalho  proposto – assim, em “Sentimentos distraídos”, o visitante pode levar o cartaz para casa e pendurá-lo na sala, quarto ou garagem, dar para alguém ou até jogar fora.

Há sinais que mostram outras maneiras de repensar o desenho e os sistemas de valores que o julga ou cria hierarquias, crenças e mitos.  Não somente dentro da arte, mas também em relação ao desenho de outras áreas de conhecimento – o desenho técnico, industrial, a ilustrativo com texto narrativo, o desenho anatômico e botânico, a história em quadrinho – estão sendo apropriados por artistas para outros fins. Desenhos técnicos da indústria e das ciências, por sua vez, são apresentados em exposições que questionam os limites entre desenho como arte e as formas de desenho em outras áreas de conhecimento.

O veículo usado por Camargo em “Sentimentos distraídos” também levanta questões sobre o sistema de valores associado a noções tradicionais do desenho – seus suportes e formas de apresentação – pois, em criar um modo de circulação para o desenho por meio de um veículo não-tradicional, o trabalho é capaz de subverter as crenças e sistema de valores sobre o desenho no contexto da arte quando apropria e desloca suportes para o desenho de outros contextos sociais – assim como apropria um estilo técnico para a escrita impressa no trabalho. O que parece mais contemporâneo também é a falta de hierarquias  nesta mistura de tipografias, linhas, sentimentos e peças de motor desenhadas – uma mistura do sentimental e do técnico. Fica nas mãos do visitante do espaço de exposição do modo ele vai valorizar o trabalho: como obra, como cartaz, como algo que atrapalha e, portanto, nem leva embora uma cópia.

(fig.2) Detalhe de “Sentimentos Distraídos”

 

Outro aspecto que parece “contemporâneo” no trabalho de Camargo, em função a uma reflexão sobre algumas exposições recentes, (como “Desenho em todos os sentidos” do SESC, 2008), é o aspecto híbrido do trabalho que deixa coexistir o técnico e o sentimento. Esta mistura também é relacionada ao veículo que serve não somente como meio de difusão do trabalho, mas também fornece um suporte deslocado de um contexto social para outro  – um cartaz com aquele estilo de um manual técnico. O veiculo é um tipo de cartaz impresso que mistura o conteúdo sentimental da escrita com sua forma visual mecânico – a representação linear de peças de motor e do carro.

Já vimos em procedimentos dadaístas de Max Ernst, sua apropriação de página de manuais ou catálogos que pintou para cobrir alguns elementos visuais impressas (“overpainting”), e para adicionar  à folha impressa e obviamente plana os índices lineares de um espaço perspectiva com tinta ao redor de algumas figuras impressas que permanecem descobertas   – i.e. sem tinta – de tal forma revelando o que cobria a ilusão tridimensional, como se fosse uma colagem simulada. Camargo não apropria a própria folha ready-made de um manual de instruções, mas apropria o estilo do manual técnico e o desloca para o contexto da arte. Também, não desloca qualquer objeto em si (como no collage). Ela utiliza um design culturalmente reconhecível bem como o formato de cartaz para criar outro objeto. A apropriação de um estilo mais técnico já existe na Arte Conceitual onde o texto é frequentemente apresentado de modo mais “objetivo” ou “impessoal”, adotando um estilo jornalístico ou design propagandista (Dan Graham, Victor Burgin), às vezes com efeito irônico, por exemplo, em “One and three chairs” (1965), Kosuth apresenta texto em forma de uma definição de dicionário (que parece ter sido deslocada através da documentação fotográfica do próprio dicionário).

Mas em Camargo não há nada frio no sentido de suas palavras, mesmo que seu o estilo seja técnico. Paradoxalmente, ela se refere a experiências subjetivas de forma objetiva. Dessa maneira, efetua um desvio da função técnico do desenho e da escrita para uma função sentimental – uma mistura que põe em dúvida os limites entre o que definimos como “técnico”  e “objetivo” versus o que percebemos como “emocional” ou “subjetivo”.  E por isso mesmo nos atinge mais pessoalmente, por sua impessoalidade no tom de voz de quem fala/escreve. A forma do cartaz não é de uma propaganda, pois lembra aqueles folhetos de instruções que recebemos junto com uma televisão ou computador novo, panfletos que acompanham algo que precisamos montar para usar ou que precisamos desmontar para consertar – usando um manual de instruções para motores, mas neste caso, precisamos ajuda, instruções para consertar nossos próprios sentimentos ou até para lembrar de prestar atenção.

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1) CAMPOS, Marcelo. “Desenho em todos os sentidos” Festival de Inverno SESC, Estado de Rio de Janeiro, Petropolis, Teresópolis e Nova Friburgo, julho a agosto de 2008. Disponível em: <http://www.galeriavirgilio.com.br/news/desenhosemtodosossentidos.html> Acesso em 05 maio 2009.
2) FERVENZA, Hélio. Limites da arte e do mundo: apresentações, inscrições, indeterminações. Disponível em: <http://www.cap.eca.usp.br/ars8.htm > Acesso em 18 julho 2009.  Sobre o termo “formas de apresentação, ver também: FERVENZA, Hélio. Formas da Apresentação: documentação, práticas e processos artísticos.
3) Krauss discute a técnica de “overpainting” de Max Ernst em relação ao trabalho, “The Master’s bedroom”, (1920). KRAUSS, Rosalind E. The optical unconscious. Cambridge: MIT Press, 1994, p. 54-56.

Prof. Dra. Alice Jean Monsell
9/10/2008  – julho 2009
Profa. Assistente IAD/UFPEL