No sertão da calma do pensamento

Marina Camargo | 2013

Era início do ano de 2012. Os mandacarus floriram em fevereiro. Finalmente a chuva voltava ao sertão. Eu chegava no momento do fim de uma história, no momento da tragédia, e do silêncio que se aproximou.

A última vez que havia feito esse percurso havia sido há vinte anos. A paisagem estava mudada. Tudo tomado de um verde brilhante das plantas que afloraram com as chuvas. O céu ainda escuro com nuvens pesadas de chuva que apagavam partes da paisagem. Vinte anos antes, a paisagem queimava no sol. Marrom, morna e seca. Sentei no mesmo lugar no carro, olhando para fora em silêncio, como havia feito anos antes.

Esse retorno ao sertão, repentino, imprevisto, indesejado, ocasionado pelo destino, desencadeou um pensamento sobre a região. E agora, de um outro modo, para além das histórias íntimas ou razões do destino, retomo o sertão.

Pensar sobre questões relacionadas ao Brasil logo após um período de viagens e residência fora do país, parecia uma necessidade, como um caminho inevitável a se seguir. Quando estava vivendo na Alemanha, fiz a série de trabalhos “Tratado de Limites” [1], relacionada à região dos pampas. Foram três viagens para os pampas no sul do Brasil e no norte do Uruguai. Talvez a distância entre esses lugares – não só geográfica, mas essencialmente a oposição entre regiões de isolamento e centralidade no mundo (com toda a carga política que está implícita em definições regionais) – tenha sido definitiva para pensar essas experiências de deslocamento.

Nas viagens pelos pampas – região extensa, onde as distâncias se relativizam – a sensação de isolamento é imensa. A continuidade dilui as fronteiras políticas, tira o sentido das definições lineares da cartografia do lugar.

Da relação com a paisagem e cartografia dos pampas para se pensar os sertões, parece haver uma sequência lógica e linear como uma narrativa construída.

Mas, aqui, é o próprio destino, alheio ao desejo, que provocou a sequência de interesses pelos pampas e sertões.

Curiosamente já havia escrito em meu caderno longos textos divagando sobre o Brasil, influenciada pelo ensaio de Stefan Zweig [2] e pelas experiências de viagem pelo interior do país e fora dele, sobre os lugares de isolamento que a distância geográfica de centros ou capitais culturais podem ocasionar.

E, como se o destino previsse o encadeamento lógico entre ideias e textos, ele então me levou para o Brasil de dentro.

Depois deste retorno ao sertão, retomei a leitura de Os Sertões, de Euclides da Cunha. A primeira parte do livro, chamada “A Terra”, volta a ser o meu principal interesse no texto: as tentativas de definir uma região ainda em processo de construção conceitual, as descrições detalhadas da paisagem, da flora, mesmo o sentido determinista de pensar como esse ambiente influencia e forma o homem da região.

“Como se faz um deserto” e “Uma categoria geográfica que Hegel não citou” são subtítulos desse capítulo de Os Sertões. Entre as categorias citadas pelo filósofo estariam a dos homens que vivem nas montanhas e os que vivem no litoral, no sentido que estas paisagens ou ambientes naturais definiriam as pessoas que vivem ali. A natureza determinando um modo de viver ou ser.

A categoria omitida (ou intencionalmente esquecida) pelo filósofo seria esta que Euclides da Cunha menciona, aquela do homem do deserto, do sertão. Qual sentido haveria em pensar no determinismo do meio sobre o homem? Só poderia pensar sobre essa resposta após uma nova viagem pelos sertões do Brasil. É quando este projeto tem início.

Paisagem cinza: em busca do sertão

 Onde fica o sertão?
 O que aparentemente é uma pergunta retórica, logo se tornou a questão central de minha pesquisa.
Ao planejar a viagem pelos sertões, precisei escolher uma parte da região para percorrer. Iniciei pelo sertão da região do rio São Francisco indo em direção ao interior da Bahia. O livro de Euclides da Cunha foi, nesse momento inicial da pesquisa, uma espécie de guia, livro de cabeceira, objeto inseparável.

Os viajantes de todas as épocas que conheceram ou exploraram o Brasil adentraram no país através dos rios. Também entrei no sertão seguindo as margens do São Francisco, às vezes me aproximando do rio, outras tendo-o como referência geográfica para entrar no sertão. Partindo de Alagoas rumo ao interior da Bahia [3].

Durante a viagem, quando comentava sobre a pesquisa, todos me falavam sobre a seca. Sertão e seca transformaram-se em sinônimos. E, de algum modo, fui tomada por esse sentido metereológico das secas do sertão. Comecei a procurar solos rachados pela falta d’água, pontes sobre rios esvaziados pelas longas secas. Mas a seca havia deixado o sertão de Alagoas, onde iniciei a viagem: a paisagem já não era cinza, mas verde. Paisagem renovada pelas chuvas, montes esverdeados. A seca prolongada fui encontrar somente no interior da Bahia.

Caminhando no fundo do leito de um rio seco, percebi que não era aquele o sertão que eu buscava. Esse era sim o sertão dos estereótipos, o sertão que legitimava a indústria da seca e fazia os habitantes da região sofrerem com a ausência de água. “Essas imagens já foram muito exploradas pela mídia”, disse-me um senhor em Canudos. A compreensão do sertão pelo senso comum não dava conta da realidade do lugar – ou melhor, dos muitos lugares entendidos como sertão.

Ali, com os pés afundados na terra rachada do leito do rio, percebi que não era esse o sertão que eu tentava compreender. Era um lugar para além de onde estava. As regiões geográficas de um país podem ser delineadas através de respostas às perguntas: Onde? Até onde?

Pensei o mesmo sobre o sertão. E fiz essa pergunta a várias pessoas no início de minha viagem. Perguntava onde deveria ir, onde estava o sertão. Cada resposta me levava a uma cidade diferente da outra, cada pessoa indicava uma região diferente do mapa.

O sertão não estava em Alagoas, mas no interior de Pernambuco; não bem em Pernambuco, mas na Paraíba; não na Bahia, mas no Piauí; não no interior do Piauí, mas no estado do Ceará. Cada um desses lugares era sertão para alguém. Todos pensavam no lugar mais seco, isolado e esquecido pelo resto do país que já haviam visitado.

Até onde é sertão? Até onde eu deveria ir para entender os sertões? E, afinal, porque importaria definir onde era sertão?

A sensação de que eu nunca alcançaria o sertão do outro (das indicações que recebia) foi mais forte. O sertão virou um lugar inalcançável. Sertão era um lugar sempre mais além de onde eu estava.

Ao mesmo tempo, a sensação de isolamento crescia dia após dia da viagem. Cada estrada parecia estar em piores condições que as anteriores e, eu, mais estrangeira do que antes. Mas esse isolamento era mais próximo de uma sensação de sufocamento, acompanhada de uma percepção de que a minha realidade havia sido transformada em definitivo. Sentia-me já parte dos sertões, sem possibilidades de viver outros mundos para além daquele. O isolamento parecia definir uma percepção de mundo, determinando um mundo mais restrito em suas fronteiras, reduzido geograficamente àquele lugar onde eu estava. Somente quando iniciei o retorno rumo ao litoral foi que essa sensação de fatalismo e sufocamento pouco a pouco se desfez.

Sem saber, ali estava o sertão. O sertão havia tomado conta de mim, de meus pensamentos. Só podia ver o mundo a partir desse lugar – desde fora do mundo, desde dentro do sertão.

O sertão é sem fim

Uma vez dentro do sertão, em meio à caatinga, sob o sol pontual que desperta antes do galo cantar e desaparece cedo trazendo a noite de surpresa, o mundo parece ganhar outra forma, outra dimensão, parece ser regido por outras regras.

De dentro, o resto do mundo parece mais distante e sem sentido. A vida passa a ser pautada por questões simples de adaptação e resistência. Suportar o calor extremo do dia, ter os olhos ofuscados pela luz, a cabeça perturbada pelo sol forte. Tudo parece ser definitivo – a seca, a caatinga, a própria permanência na região. O sertão é para sempre quando se vive nele. Só se compreende o sertão quando ali se adentra. E, embora indefinido em seus limites geográficos, é ele quem começa a definir o que você é ou pode vir a ser.

Há algo na região que contamina a percepção dos lugares, muda as nossas perspectivas, nos desloca para longe do centro. Ao mesmo tempo, atrai e provoca o desejo de seguir mais dois mil quilômetros país adentro em busca desse lugar.

Se o sertão está sempre mais além, ele é tão inalcançável quanto o desejo. À medida em que a distância em relação ao litoral aumenta, abre-se, pouco a pouco, um espaço interno.

O sertão é dentro da gente, escreveu Guimarães Rosa.

Sertão é um mundo poderoso, que cresce, se desenvolve, se apropria das nossas percepções. Expande-se para dentro do país, da paisagem, da terra, de nós mesmos. Um lugar de certo modo esquecido, mas que também provoca uma espécie de esquecimento. Dali, esquece-se do mundo exterior, a percepção da realidade é transformada em algo eterno e imutável. E também o mundo esquece do sertão, deixando esta ser ainda uma região indefinida no interior do país.

Quando Euclides da Cunha lembra Hegel em seu texto “Uma categoria geográfica que Hegel não citou”, fica implícita a referência a um esquecimento. Através do que não é dito, torna-se implícito o vazio que o sertão representa.


[1] A série foi realizada no ano de 2011, sendo um trabalho comissionado pela 8a Bienal do Mercosul (realizada em Porto Alegre, Brasil, naquele mesmo ano). No período de 2010 a 2011, estava vivendo em Munique por ocasião de uma bolsa de estudos do DAAD.

[2] “Brasil, um país do futuro” (1941), de Stefan Zweig, no qual o autor revê a história e formação do Brasil.

[3] Passando por Batalha, Jacaré dos Homens, Piranhas, Paulo Afonso, Raso da Catarina, Jerimoabo, Canudos, Euclides da Cunha, Propriá, encerrando a viagem no local de partida, em Maceió.


Texto originalmente publicado no livro Como se faz um deserto (2013).